Atualmente, o amplo acesso à informação permite que a população brasileira acompanhe de perto as questões discutidas nos diversos órgãos que compõe a estrutura administrativa do país.
Isso não é diferente em relação à polêmica envolvendo a inconstitucionalidade da prisão em segunda instância que está na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal. Há um clima de ansiedade no ar. A comunidade em geral aguarda um posicionamento da Suprema Corte. Parece até final de copa do mundo. A escalação da seleção formada pelos onze ministros está na ponta da língua dos brasileiros. Discute-se, por toda parte, qual será o placar final deste julgamento que já entrou para história.
Mas, afinal, qual a razão de um debate tão fervoroso?
Vamos viajar no tempo para compreender como tudo isso começou.
Até 2009, os réus que fossem condenados em primeira instância, ou seja, por meio da decisão de um juiz local, já podiam ser submetidos ao cumprimento de pena privativa de liberdade, era o que se extraía do art. 393 do Código de Processo Penal, revogado em 2011 que dispunha que eram efeitos da sentença condenatória recorrível: ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança; ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.
Sendo assim, o acusado condenado, ainda que pudesse recorrer da decisão judicial, iniciava, desde logo, o cumprimento da pena.
Esse entendimento sofrera alteração em razão do Habeas Corpus 84078. A partir de então, em observância ao Princípio Constitucional da Presunção de Inocência, previsto no art. 5º, inciso LVII de nossa lei maior, os réus somente se submeteriam à constrição de sua liberdade após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, em outras palavras, a pena passaria a iniciar-se depois de serem esgotados todos os recursos possíveis ao caso.
Desse modo, no período entre 2009 a 2016, o posicionamento quanto ao início do cumprimento da pena teria seu marco assim que encerradas todas as tentativas existentes de modificação da decisão judicial. O rigor da condenação em primeira instância fora substituído por um longo caminho, marcado por inúmeros recursos para que o réu fosse, finalmente, conduzido à prisão caso fosse condenado.
O debate foi retomado em 2016, desta vez, por força do Habeas Corpus 126292. Inaugurava-se um terceiro posicionamento que se afigurava como um ponto de equilíbrio entre os dois anteriores. Passava-se a aceitar a hipótese de uma decisão em segunda instância, aquela proferida por um tribunal colegiado, formado por mais de um julgador como sendo suficiente para admitir a prisão do réu. Tal entendimento justificava-se no fato de que a discussão sobre provas e fatos se encerra na segunda instância, cabendo aos tribunais superiores, via de regra, apenas assuntos puramente de direito.
Deste modo, a possibilidade de interposição de recursos Especial ou Extraordinário ao Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal não obstariam o cumprimento da pena, uma vez que não revolveriam mais o mérito da questão.
Diante disso, esperava-se que a enorme polêmica estaria pacificada, porém, o vulcão despertaria tempos depois. Em 2018, um novo HÁBEAS CORPUS impetrado pela defesa do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, sob o Nº 152752, reacenderia a questão. Todavia, o posicionamento permanecera o mesmo. O STF reafirmou seu entendimento no sentido de autorizar o início do cumprimento da pena após a decisão em segundo grau.
No entanto, os questionamentos continuaram. Ações foram ajuizadas pelo Partido Ecológico Nacional (PEN, atual Patriota), o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) com o objetivo de examinar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), que prevê, entre as condições para a prisão, o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Aos que defendem a execução antecipada, fazem-no por acreditar que a espera pelo pronunciamento das cortes superiores para efetivar o início da pena beneficia, tão-somente, aqueles que dispõe de meios para custear a interposição de diversos recursos, em sua maioria, protelatórios, com o único objetivo de postergar a decisão. Sabe-se ainda que, em alguns casos, devido à prolongada espera, ocorre a prescrição da pena, o que aumenta a sensação de impunidade que vigora em nosso país. Além disso, outro ponto que justifica a manutenção da prisão em segundo grau é o fato de que a discussão sobre as provas e os fatos que envolvem a conduta delituosa encerra-se, na maioria dos casos, nesta instância. Deste modo, os tribunais superiores não reexaminam tais aspectos, cabendo-lhes decidir questões puramente jurídicas.
Assim, muito embora haja um princípio constitucional que determine a necessidade de finalizar todo o processo, esgotando-se todos os recursos possíveis para tanto, há que se relativizar tal entendimento em nome de uma efetiva atuação jurisdicional. Sendo incoerente aguardar a conclusão de um longo caminho de sucessivos recursos, normalmente interpostos por condenados em crimes do colarinho branco, detentores de verba mais que suficiente para bancar o adiamento das decisões.
Por outro lado, na visão dos que se posicionam em relação à interpretação absoluta do princípio constitucional, destacam-se os argumentos de que a nossa Lei maior é cristalina quando disciplina este instituto. De modo que não se abre margem para opinião diversa, segundo esta corrente, contrariar o Princípio da Presunção de Inocência, impondo ao réu o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória seria reescrever a Constituição Federal. Neste sentido, os partidários desse entendimento ressaltam que a morosidade e ineficiência do judiciário não podem ser invocadas como argumentos para afastar garantias constitucionais. Além disso, renegar tal garantia seria como autorizar um verdadeiro retrocesso a um período onde o que vigia era a arbitrariedade e autoritarismo estatais.
Infelizmente, dentro de um turbilhão de informações oferecidas e compartilhadas de maneira indiscriminada, muitas ideias falsas revestem-se de veracidade. É o caso, por exemplo, da afirmação que considera o fim da prisão em segundo grau como um benefício aos poderosos, notadamente aos que se encontram sendo processados pelos chamados Crimes do Colarinho Branco, afigura-se, contrariamente a este entendimento, um detalhado estudo que compila informações estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro.
Trata-se do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias realizado em 2016, o qual aponta que mais da metade da população carcerária em nosso país é composta por pessoas de baixa escolaridade, sendo de apenas 0,5% o número de presos com ensino superior completo. O estudo também revela que negros e pardos constituem 64% do total de aprisionados.
Ademais, destaca-se que os crimes que originaram a maioria das prisões são aqueles ligados ao tráfico de drogas, crimes contra o patrimônio e contra a vida. Logo, por todo exposto, não há como discordar que a relativização do Princípio da Presunção de Inocência atingirá frontalmente à parcela mais vulnerável da sociedade, serão milhares de negros e pobres tolhidos em seu direito de defesa. Pessoas que, muitas vezes, amargam uma prisão injusta, sem voz ou vez, vítimas de uma flagrante oposição à Constituição.
Além disso, circulam notícias de que mais de cem mil presos estarão nas ruas, que criminosos perigosos serão soltos ou que a prisão provisória não estará mais autorizada, entre tantas outras mentiras que prestam um desserviço à sociedade. É evidente que presos perigosos continuarão presos, de maneira que o reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão em segundo grau não extinguirá as prisões preventivas e temporárias que pressupõem a existência de razões contundentes para sua indicação.
Perante a clareza do texto contido na Lei maior, não resta outra saída aos seus oponentes, a não ser proliferar um sem número de argumentos incoerentes e inverídicos, já que não conseguem localizar amparo constitucional que fundamente seus motivos.
Nas últimas semanas, o assunto voltou a ser discutido no Supremo Tribunal Federal. Até o momento, quatro ministros – Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso e Luiz Fux – consideram que a possibilidade é constitucional. Outros três, o ministro Marco Aurélio (relator), a ministra Rosa Weber e o ministro Ricardo Lewandowski, entendem que a medida ofende o princípio constitucional da presunção de inocência. O julgamento prosseguirá no início de novembro.
Segundo Rosa Weber, embora a sociedade tenha razão em exigir que o processo penal seja rápido e efetivo, problemas e distorções decorrentes das normas penais, como o tempo entre a abertura do processo e o início do cumprimento da pena, “não devem ser resolvidos pela supressão de garantias, e sim mediante o aperfeiçoamento da legislação”.
Ao votar pela possibilidade de execução provisória da pena, o ministro Luiz Fux afirmou que o princípio da presunção de inocência não tem vinculação com a prisão. Em seu entendimento, a Constituição Federal, no inciso LXI do artigo 5º, pretende apenas garantir que até o trânsito em julgado o réu tenha condição de provar sua inocência. A presunção de não culpabilidade, segundo Fux, é direito fundamental. “No entanto, na medida em que o processo tramita, a presunção vai sendo mitigada. Há uma gradação”, afirmou. O ministro lembrou ainda que as instâncias superiores (STF e STJ) não analisam mais a autoria e a materialidade do crime.
O ministro destacou, por fim, que a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância está contemplada em vários documentos transnacionais aos quais o Brasil se submete.
Estes dois posicionamentos divergentes deixam claro que o embate ainda se estenderá de maneira bastante acalorada.
O que se verifica, ante o cenário atual é que, por um lado, o que deve prevalecer é o texto legal ao passo que, para os que divergem, busca-se uma maior efetividade da resposta estatal, porém, esta efetividade não pode ser invocada em desacordo com garantias fundamentais estabelecidas em nossa Constituição. Dessa maneira, espera-se que, ao final, a vitória seja da democracia.